sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Carlos, Erasmo... - Erasmo Carlos

Erasmo Carlos - Carlos, Erasmo... (1971)

Tá , você já deve estar cansado de saber que o Erasmo Carlos é "O Tremendão", o amigo de fé irmão camarada do nosso Rei Roberto. Que todas as músicas que o Roberto escreveu foi com ele e coisas desse tipo, e que o Erasmo tinha que manter a sua fama de mau na época da Jovem Guarda. O que você não deve saber é que nos anos 70, enquanto seu camarada inventava de fazer soul brazuca e depois música religiosa pra empregadas e gordinhas, o nosso bom e velho Erasmo aqui teve sua fase hippie alternativo psicodelia maravilha.

É uma fase que teve início com o disco anterior, "Erasmo Carlos & Os Tremendões", onde ele cantava pérolas como "Coqueiro Verde", "Sentado à Beira do Caminho" e regravava belezuras como "Saudosismo" (Caetano), "Teletema" (Antonio Adolfo/Tibério Gaspar) e pasmem... "Aquarela do Brasil" (Ary Barroso).

Mas é nesse disco aqui, com capa com jeitão de caminhoneiro Carga Pesada, que ele finalmente mete o pé na porta e acaba cometendo um dos melhores discos feitos no Brasil. Pra começar, um samba-rock classudo, "De Noite na Cama" (depois regravado por Marisa Monte), do Caetano. Passa à balada "Masculino, Feminino", um lindo dueto com Marisa Fossa que marca bem a sonoridade "maravilha" da época, com ecos de Burt Bacharach , mas também da psicodelia do Jefferson Airplane e do Mamas & Papas.

Essa mesma sonoridade aparece também na romântica "Ciça , Cecília" (que emula os primeiros trabalhos de Tim Maia ,e portanto ,também a Motown), "Em Busca das Canções Perdidas Nº2" e na gospel (olha o Robertão aí gente) "Sodoma e Gomorra". Erasmo mostra seu lado samba-rock também em "26 Anos de Vida Normal" (dos Irmãos Valle) e em "Agora Ninguém Chora Mais", de Jorge Ben.

O lado hippie responde por pérolas como "É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo", "Dois Animais na Selva Suja da Rua", do uruguaio Taiguara, "Mundo Deserto" - um soul gritado à maneira de "Respect" que depois seria interpretado por Elis Regina no LP "Ela" - e na maconhada "Maria Joana", com versos como "na vida tudo passa/o amor vem como nuvem de fumaça".

Depois disso , Erasmo ainda faria outros discos bem semelhantes e igualmente interessantes nos anos 70 , como "Sonhos & Memórias", "1990 - Projeto Salva Terra" e "A Banda dos Contentes". Nos anos 80 , volta com força total no disco "Mulher" , com "Minha Superstar", "Pega na Mentira" e a faixa-título. E até hoje participa de revivals da Jovem Guarda...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Sonhar Não Custa Nada

Um conto de carnaval pra quarta-feira de cinzas. Ah, Mel , obrigado pela info! :D (detalhe bizarro: o texto foi parido ao som do Kid A do Radiohead. Mais carnavalesco impossível!)

"Delírio sensual , arco-íris de prazer
Amor , eu vou te anoitecer"
(Sonhar Não Custa Nada , Mocidade Independente de Padre Miguel)

Quarta-feira de cinzas à tarde não significa fim de carnaval pra mim. É o momento mais empolgante depois do desfile da minha querida Mocidade. A apuração das notas. Não sei , não me pergunte porque eu gosto tanto daquilo. Eu nem gosto de números , só mato aula de Matemática, - pra ficar batucando lá na quadra e observar as passistas ensaiando , que fique bem claro - mas eu adoro a apuração.

Não sei se vocês sabem , mas tem muita aula de Matemática. E tem uma passista , aprendiz de porta-bandeira que é a pura perfeição de Joãosinho Trinta Nosso Senhor na Terra. (Joãosinho Trinta é O cara. Desde molequinho pé no chão com "Sonhar com Rei Dá Leão" até uns anos atrás com o Ratos e Urubus , eu presto reverências a ele). Sério , aquela mulata faz meu coração palpitar feito a nossa bateria nota 10.

Mas voltando à apuração. Esse ano a gente veio bem. Belo desfile , um samba lindo, "Sonhar Não Custa Nada" , a gente tá no páreo. E o que eu mais quero é ver aquele sorriso na cara da minha princesa , minha Dona Zica se eu fosse Cartola. A comunidade toda na quadra , quatro horas da tarde , televisão ligada na Globo. Expectativa total.

À medida que as notas vão sendo anunciadas , vou vendo o medo aparecer. A minha musa aperta com mais força a bandeira da escola , rói as unhas pintadas de branco e verde , chora , grita , se desespera. Eu sambo pra não chorar , foi um desfile genial do Renato.

Ao fim da transmissão , não tem mais jeito. Estácio campeã , e a minha Mocidade vice. Não há nada a fazer senão chorar. Epa epa epa , peraí , mas é uma história de carnaval , então não tem que ser triste. Vamos achar logo esse final feliz. Esquece esse "senão chorar". Rebobina a fita , ou melhor: volta a escola pro setor 1.

Ela chora. No espírito da comunidade , eu acabo decidindo ir falar com ela.
- Não chora não , que ano que vem tem mais. E sonhar não custa nada.
- É , eu sei. Você é o André né?
- Peraí , como é que você sabe o meu nome?
- E você acha que eu não reparei nos teus olhares em todos os ensaios? Além disso , você tem cara de quem tem samba no pé.
- Eu?
- É. E eu preciso de um par pra poder ensaiar. Quer ser meu mestre-sala?

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Dos Braços de Morfeu

"Keep me from these sleepless nights".
(Dearest , Buddy Holly)

Ela parece estar dormindo , e talvez até esteja mesmo , nesse sofá estranho que ocupa a casa desse meu amigo cheio da grana que dá essas festas com pessoas modernas e alternativas. E eu e ela não pertencemos a esse mundo, nós apenas estamos aqui por uma coincidência. Ela, por ter o sorriso mais bonito do mundo. Eu, por alguma estranha maneira , convenci as pessoas que sou um intelectual e não essa farsa debaixo de barba.

Enquanto essa música estranha toca , um barulho ensurdecedor no jardim , ela mantém seus olhos fechados. Certa vez eu li num livro , que de todas as maneiras que a mulher amada pode ser bela , a mais bela delas é quando ela dorme. E o pior é que é verdade. Tão quieta , ela deve estar sonhando com alguma coisa , campos cheios de flores , fadinhas , elfos ou coisas que permeiam sonhos de mulheres-meninas.

E eu com esse vinho do Porto, pedindo ao destino que mande-a dos braços de Morfeu pros meus.

Ela acorda.

- Bom dia?!
- Bom dia... você tava sonhando?
- É , acho que sim...
- Provavelmente com algum príncipe encantado. Ou coisa parecida.
- Até era. Mas não era um príncipe encantado clássico , com cavalo branco e carruagem.
- É , os contos de fada andam meio fora de moda. Mas como ele era então?
- Tá vendo aquele espelho ali?
- Tô.
- Então...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Aqui ou em Paris

Pequeno devaneio envolvendo amores platônicos. Qualquer semelhança ou inspiração em Juliana Hatfield não é mera coincidência.

Não , não me recuse tua boca
Minha última morada
Antes do meu encontro contra o muro
Nem tua língua
Minha favorita rival
Nem teu beijo.

Um beijo que tivesse um gosto
De Coca-Cola e bolo de chocolate.
Como o último tango que dançamos
Aqui.
Ou em Paris.

Mirage.
Ilusão.
Não sei se abro ou fecho os olhos
(Uma voz em espanhol: Abre los ojos , abre los ojos)
Você sempre aparece.

Azul , rosa , lilás , cinza , verde , branco , tons pastéis.
Não importa a cor.

"Won't you please materialize?"

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Grace - Jeff Buckley

Jeff Buckley - Grace (1994)

Primeiro , algo importante sobre este disco:você nunca viu ou nunca verá tão parecido com ele. Pode buscar similaridades mil com outros artistas (que é algo que farei nas próximas linhas) , mas nenhum deles uniu tais atributos em um álbum só.

Segundo: mas quem é esse tal de Jeff Buckley? Filho de pai ausente e genial (Tim Buckley , trovador maldito dos anos 60 que misturou rock , folk e jazz), criado por uma mãe severa e um padastro que foi bem legal com ele , dando-o discos do Led Zeppelin. Dono de uma voz potentíssima , com enorme extensão vocal de cinco oitavas (para os leigos: a normal para os humanos é de apenas duas) , usa-a com toda a propriedade. Estudou guitarra insanamente na adolescência , e de certa maneira , por esses dois últimos fatos , encarnou vários mitos em seu próprio corpo.

Buckley foi Nina Simone ao usar sua voz com tal doçura e sofreguidão em suas canções que até chega a incomodar (e dela fez um cover , "Lilac Wine"). Foi Page & Plant em "Eternal Life", facada guitarrística em corações solitários e tempestuosos. Foi Van Morrison ao usar símbolos e metáforas aliados a uma riqueza melódica e a uma voz inconfundível. Foi Cohen e foi Morrissey em uma melancolia poética , quase niilista. Foi Cobain ao explorar o ruído e a dissonância e ao morrer de forma trágica deixando uma obra curta pra trás.
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Mas também foi ele próprio ao unir tais caracteres. Seus arranjos soam ao mesmo tempo simples , mas refinados e intrincados. É um filho bastardo do rock alternativo dos anos 90, do folk sessentista e do jazz. Começa underground tocando em botecos (como podemos ver no EP "Live at Sin-è") e conquista fãs como Bono Vox e Paul McCartney. Termina sua vida de maneira tragicômica , morrendo afogado no rio Mississippi ao som de "Whole Lotta Love".
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Assume-se um amante bêbedo em "Lilac Wine" , pede desculpas e sente-se miserável em "Last Goodbye" , declara que o amor não tem fim na pungente "Lover , You Should've Come Over", mostra-se sobre o efeito de drogas em "Mojo Pin" e busca a redenção na desperança , como na irretocável regravação da "Hallelujah" , de Cohen. Nota: o próprio Cohen declarou isso.

"Grace" , de 94 , é seu único disco em vida. Não digo que foi suficiente , pois um grande artista sempre terá algo a oferecer - desde obras-primas tardias , como o SMiLe de Brian Wilson , até um espetáculo da decadência , à maneira de Michael Jackson , por exemplo. Mas definitivamente colocou o nome de Buckley entre os gênios de uma época.

"Jeff Buckley é uma gota cristalina num oceano de ruídos" (Bono Vox)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Hey Babe

"Agora todas as canções de amor fazem sentido"
(O Banana , Superguidis)

Ela é minha ex , e canta numa banda. Nós ainda não resolvemos muito bem esse lance de ex , às vezes rola um comeback , que sempre acaba em sexo , discussões e os cacos de algum vaso onde ela antes pusera as rosas que eu lhe dera no começo da noite. E por alguma estranha coincidência , hoje é um dia da fase "vamos ser só amigos".

É noite e muita fumaça dos cigarros alheios chega aos meus pulmões. Malditos inferninhos da rua Augusta , bandas iniciantes , meninas que berram letras "eu não ligo pra minha reputação" com quatro bicordes numa base 4/4 berrada. Mas ela não.

Sua voz é como a de um anjo , e suas músicas , apesar de dissonantes soarem , são maravilhosamente melódicas. Letras sobre um cara que a deixou e espalhou seus segredos para os amigos , sobre objetos atirados , flores despedaçadas , novos jeitos de levar a vida sem ele. Ela é linda , e balança seu corpo de uma maneira malemolente durante as músicas , de modo que seu cabelo ruivo e curto se envolve em um ritmo envolvente também. O resto da banda é altamente ignorável , três caras que são ótimos músicos , mas totalmente inexpressivos como compositores ou personalidades.

Enquanto eu mexo com o dedo o gelo nesse meu copo de uísque , escondido no meu blazer , percebo que ela está cantando pra mim. E de seus olhos saem lágrimas , que ela esconde com sorrisos de alegria por cantar ali. E eu continuo a mexer o gelo , até que ele não mais exista. É quando eu me dou conta de que o show acabou.

Saio em busca de uma floricultura pra depois voltar ao bar. Sim , essa noite eu pretendo um comeback. Mas dessa vez as rosas permanecerão lá , intocadas , até o próximo final de semana , sem vasos quebrados ou lágrimas.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Torradas

"You've been reading some old letters
You smile and think how much you've changed,."
(This is the Day , The The)

Acordar sozinho nas manhãs de sábado sempre foi algo que eu gostei muito. Meu pai lá embaixo na garagem com suas serras e lixadeiras não me incomodava , nem minha mãe que saía pra passear com a minha irmã ou ir pra academia. Era a maneira perfeita de acordar. Eu podia ligar o rádio bem alto , com qualquer coisa que me fizesse sorrir e pensar na vida , arrumar a cama , trocar de roupa e descer pra cozinha.

Fazer minhas torradas com manteiga e orégano , meu copo de chá gelado , alguma coisa tocando no rádio da sala (Secos & Molhados e Traveling Wilburys eram quase sempre os favoritos) e simplesmente sentar na mesa da cozinha pensando sobre a vida. Porque as coisas eram daquele jeito e como tudo tinha me levado até aquele lugar , ali.

Por exemplo: se eu tivesse sido menos criança e mais esperto , teria beijado aquela menina com a cara da Velma na festa de aniversário dela da sexta série. Se eu tivesse sido mais macho , poderia ter puxado a japonesa estranha pros meus braços numa festa de quinze anos. E de milhares de se's , eu chego à seguinte conclusão.

Se tudo fosse do jeito diferente , eu não estaria aqui comendo essas torradas maravilhosas. Talvez estivesse comendo-as na casa de uma dessas gurias. Talvez eu ainda estivesse dormindo , depois de um fora na sexta à noite. E não estaria aqui comendo essas torradas maravilhosas. E isso me parece perfeitamente útil. And so , a verdade é que mesmo que o The The continue gritando "this is the day your life surely change" , as coisas só acontecem porque a gente quer mesmo. E no fim das contas , a estrada sempre acaba num lugar legal. Com torradas , de preferência.